Para começar esse texto, vou propor que você tente se lembrar da primeira vez que você foi procurar um trabalho, lembrou? Se ainda não chegou nesse estágio não tem problema, apenas se imagine procurando…Agora leia as frases abaixo:
“Magazine Luiza, abre processo seletivo para trainees exclusivamente para pessoas negras”; “Bayer, líder no setor faz seleção exclusiva para jovens negros para processo trainee”; “Vaga reservada exclusivamente para pessoas com deficiência” “Vagas exclusivas para candidatura de pessoas trans”.
O que você sentiu? Provavelmente se for uma pessoa que nunca teve barreiras para conseguir um trabalho por conta do racismo, estereótipos ou preconceitos, você pode ter tido algum tipo de resistência, agora se você for uma pessoa negra, ou atravessada por algum dos marcadores apresentados, é provável que você tenha sentido uma esperança.
Se você é da geração X ou Y essas frases e ações são extremamente novas, em nenhum momento antes dos anos 2000 se observaram esses tipos de frases vinculadas ao recrutamento em empresas. Esse cenário de mudança, constitui-se como uma quebra de um paradigma, que nada mais é que romper com um padrão reproduzido e socialmente aceito, criando outras possibilidades.
Por isso, estamos vivenciando mudanças de paradigmas extremamente importantes para a construção de uma sociedade mais equânime, mesmo que em passos lentos, essas mudanças estão acontecendo e provavelmente nem teremos tempo para ver o resultado delas de forma mais efetiva. Dentro disso, o importante é perceber no que conseguimos trabalhar hoje para construir um futuro melhor.
Uma dessas mudanças, dizem respeito às frases que apresentei no início desse texto, que é a inclusão das ações afirmativas em diferentes áreas, como na educação superior e processos de seleção no setor público e em algumas empresas privadas.
A pesquisadora, professora e especialista em políticas de ações afirmativas Nilma Lino Gomes, entende as ações afirmativas como um “conjunto de políticas, ações e orientações públicas ou privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário que tem como objetivo corrigir as desigualdades historicamente impostas a determinados grupos sociais e/ou étnico racial com um histórico comprovado de discriminação e exclusão, possuindo um caráter emergencial e transitório.” Essa definição, mesmo que objetiva, diz muito sobre o que são e a quem se direciona essas políticas. Partimos dela para entender mais a fundo essas transformações…
AS MUDANÇAS INICIAM
Inicialmente as ações afirmativas, ou mais popularmente conhecidas como cotas, foram criadas após reivindicações de movimentos negros organizados e intelectuais, pelas construções de ações de reparação á população negra, no âmbito educacional. Em um país que teve mais de 300 anos de escravização de pessoas negras, e quando do término desse regime, não ter construído nenhum tipo de ação reparadora ou de garantia mínimas de direitos para essas pessoas, garantir as ações afirmativas era o mínimo, e que bom que contamos com importantes nomes para essa conquista, como: Lélia Gonzalez, Silvio de Almeida, Jurema Werneck, Beatriz Nascimento…
O marco das ações afirmativas, começa em 2001, quando foi realizada a III Conferência Internacional de Combate ao Racismo realizado na África do Sul, foi desenvolvido um plano de ação na qual os países deveriam incluir ações afirmativas ou discriminações positivas que visassem promover o acesso de grupos minorizados em diferentes áreas. No Brasil essas ações só começam a ganhar mais força a partir de 2012 quando o governo da época aprova a Lei 12.711/2012 que obrigou instituições federais de ensino superior a reservar vagas para pessoas negras, pardas ou indígenas, provenientes de escolas públicas e com renda mínima de 1,5 salários-mínimos. A partir de 2016 a lei foi complementada e garantiu a reserva de vagas também para pessoas com deficiência. O advento dessa lei não foi pacífico, houve diversas manifestações contrárias a inclusão das cotas, inclusive com envio de cartas A Câmara de deputados, contendo assinaturas de centenas de pessoas contrárias, com argumentos detratores e preconceituosos em relação ás pessoas que poderiam ingressar nas instituições federais.
ALGUNS RESULTADOS SÃO PERCEBIDOS
Mesmo com esse contingente de pessoas “contrárias” as cotas, as mudanças iniciaram, e toda essa movimentação, impulsionou uma transformação no perfil das instituições públicas, tornando esses espaços mais diversos. Para se ter uma ideia, em uma pesquisa americana, realizada com instituições do Brasil, publicada na revista Economics of Education, foi demonstrado resultados de análises de 48 Universidades públicas, onde foi constatado um aumento de 9,8% de estudantes negros e pardos, um aumento de 10,7% de estudantes de escolas públicas e 14,9% de estudantes de nível econômico mais baixo.
Tornando as Universidades e instituições de ensino mais diversas e consequentemente mais inovadoras, outras mudanças significativas começaram a acontecer. Os estudantes que ingressaram nas instituições percebiam que esses espaços ainda reproduzem um determinado padrão, mas, o que aconteceu foi que o contato com esse padrão os fez questionar e não mais aceitar a forma em que algumas instituições se organizavam. Aqui reforço que olhemos lá em cima nas frases que iniciaram esse texto, consegue perceber como chegamos aqui? As ações afirmativas, após quase 10 anos de sua implementação, começam a chegar nas organizações privadas, e como já sabido, foi trazida por meio de uma movimentação, que começou lá no início com os movimentos negros e agora deságua nos dias atuais.
COMO AS EMPRESAS ESTÃO COLOCANDO EM PRÁTICA
Algumas empresas estão adotando em seus processos seletivos a reserva ou exclusividade de vagas para grupos minorizados, incluindo: pessoas negras, indígenas, pessoas com deficiência, LGBTQIA+, entre outros. Como exemplo mais notório e que inclusive foi alvo de processo judicial, temos a Magazine Luiza, uma das empresas líder no mercado de varejo no Brasil, decidiu em 2020 fazer um processo seletivo para trainees voltado exclusivamente para pessoas negras.
No mesmo caminho, a Bayer, outra líder no seu mercado, também realizou um processo seletivo com as mesmas características, e novamente ascenderam-se os debates sobre a legitimidade desse tipo de processo de recrutamento. Mediante a tais acontecimentos, podemos concluir que essas ações se constituem como uma “discriminação positiva”, ou seja tratar desigualmente algumas pessoas que estejam em vantagem social, visando igualar as oportunidades a grupos que estejam em desigualdade.
INCLUIR É CAMINHO, CULTURA INCLUSIVA É CONSTRUÇÃO
Chegando ao final dessas reflexões, vale a pena mencionar que no Brasil pessoas negras (pretas e pardas) compõem cerca de 56% da população, na contramão dessa composição, mediante pesquisas, como a do Instituto Ethos, realizado em 2017, com as 500 empresas de maior faturamento do Brasil constatou que os profissionais negros correspondiam a apenas 6,3% dos postos de gerências e 4,7% do quadro executivo. Ou seja, ainda pessoas negras estão em desvantagens sociais e de oportunidade em relação ás pessoas brancas. Por isso, as ações afirmativas são uma das estratégias mais rápidas de fazer a inserção de pessoas negras nos ambientes onde esse grupo esteja subrepresentado, não apenas para inserir, mas para que essa inserção possa criar possibilidades, possa gerar valor, agregar e causar inovação. Por isso, aqui na B4People, trabalhamos com a construção de estratégias que inclua as ações afirmativas nas organizações a partir de ações mais amplas e estratégicas, pois entendemos que não vale apenas incluir, é preciso que essas pessoas estejam inseridas em um ambiente inclusivo, acolhedor e que não coloque de lado sua realidade.
Sempre reforçamos que o compromisso com a verdadeira inclusão e sua efetividade é de toda a organização, principalmente da liderança pois é essa que conduz toda organização para os objetivos que ela visa alcançar e se construir uma cultura inclusiva está nesses objetivos, então é preciso fazer um trabalho que crie conexão para conduzir as ações. É imprescindível que saibamos que as ações afirmativas estão estritamente ligadas a promover a equidade e igualdade, logo elas se constituem como direito, legitimamente reconhecido na Constituição Federal, visando oferecer oportunidades de acordo com a necessidade das pessoas, e aqui, ninguém está falando de tirar o mérito, estamos tratando de promover ações equânimes que possibilitem que pessoas diversas possam ocupar variados lugares na esfera social.
NÓS, E O COMPROMISSO COM AS AÇÕES AFIRMATIVAS
Portanto, qualquer ação pública ou privada que vise inserir e tornar efetiva as ações afirmativas em sua estrutura organizacional, necessita de um trabalho anterior, durante e posterior a sua inserção, e não são trabalhos realizados com palestras, ou apenas treinamentos esporádicos, são trabalhos robustos e de acompanhamento contínuo, que possibilite a mudança de vieses inconscientes e uma mudança de mindset.
Como mulher negra, estudantes ingressantes pelo sistema de cotas, eu não poderia deixar de dizer que ainda existe muito para se fazer em relação a inclusão efetiva, tanto nas Universidades quanto nas empresas, o racismo é uma estrutura complexa que infelizmente já faz parte do nosso imaginário a gerações. Porém, não é por isso que devamos parar por aqui, é daqui e daí que começamos a buscar as mudanças e quebra de paradigmas para que amanhã ás futuras gerações possam ocupar, sonhar e vislumbrar com ambientes e profissões que elas queiram ser e se tornar. Parafraseando Jurema Werneck: “Nossos passos vêm de muito longe”, várias ações nos acompanham desde lá, e tem muita ação por vir!
Espero que esse texto tenha contribuído para virar várias chavinhas ai, e que a partir disso possamos de fato agir para transformar!
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